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terça-feira, 22 de outubro de 2013

.Os falsos argumentos de direito contra o Acordo Ortográfico - Fernando Guerra (jurista)

 Antes do Formulário Ortográfico  de 1911 era assim...
 (Imagem encontrada AQUI)
 
No contexto das audições parlamentares do Grupo de Trabalho para Acompanhamento da Aplicação do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, da Comissão de Educação, Ciência e Cultura da Assembleia da República Portuguesa, o jurista Fernando Guerra apresentou, em 4 de abril de 2013, o documento que aqui se disponibiliza.

Entre os argumentos contrários à nova ortografia da língua portuguesa e aos atos de direito internacional que a estabelecem, alguns afirmam-se de natureza jurídica. Passaremos a analisá-los, tanto quanto é possível entendê-los como argumentos jurídicos. Explicarei: as afirmações que pretendem considerar a nova ortografia juridicamente inválida porque atentaria contra «a marca identitária do povo», ou porque seria «indiferente aos argumentos da diversidade, da etimologia, da sonoridade e da estética da língua reiteradamente brandidos pelos seus opositores», podem servir para alindar poemas a enviar a jogos florais de aldeia, mas dificilmente serão consideradas argumentos jurídicos. O mesmo se dirá da ideia criativa segundo a qual a ortografia não poder ser modificada porque tal seria rever a Constituição da República, revisão impossível pois que atentaria contra os limites materiais impostos ao legislador constitucional, nomeadamente «o princípio da identidade nacional e cultural e o núcleo essencial de vários direitos, liberdade e garantias». Estranhas, peregrinas teorias de juristas com alma de poetas, só idênticas às de um conhecido poeta, jurista de formação, que, no meio da artilharia de petardos que diariamente desfere contra a nova ortografia, apontou ontem como atentado à memória do padre António Vieira a edição das obras do pensador que aplica a nova ortografia. Por que não aplicar a ortografia do tempo em que o Padre António Vieira escreveu? E os sonetos de Shakespeare, traduzidos para português pelo conhecido poeta, seguem a norma ortográfica do século XVI? E o Hino Nacional, deverá o poema sempre ser transcrito com recurso à ortografia de 1910 para que não se ofenda a identidade nacional? Será violar a Constituição reproduzir o artigo 112.° da lei fundamental escrevendo “Atos normativos” em vez de “Actos normativos”? Pergunte-se ao Tribunal Constitucional. Quanto a violações da Constituição, temos pano para mangas: peça-se urgência na resposta; que seja dada antes do termo do período de transição previsto até à plena aplicação do AO.
Será o bom senso incompatível com certas interpretações jurídicas e certas liberdades poéticas? Deixemos tais poéticas a juristas-poetas e a poetas-juristas e vejamos três razões que o direito material consideraria contrárias à integração da nova ortografia na ordem jurídica portuguesa.
1. O Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, assinado em Lisboa em 16 de dezembro de 1990 (AO), nunca entrou em vigor por falta de ratificação de todos os Estados signatários. O Segundo Protocolo Modificativo ao AO, assinado em São Tomé e Príncipe em 25 de julho de 2004, que altera o artigo 3.° da redação inicial, no sentido de prever que o AO “entrará em vigor com o terceiro depósito de instrumento de ratificação junto da República Portuguesa”, seria contrário o direito internacional e, por isso, ferido de nulidade.  Em princípio, um ato de direito internacional entra em vigor logo que o consentimento a ficar vinculado (através da ratificação) seja manifestado por todos os Estados que tenham participado na respetiva negociação (cfr. art. 24.º, n.º 2 da Convenção de Viena Sobre o Direito dos Tratados, de 1969). Ora, o n.º 1 da mesma disposição admite a possibilidade de as partes convirem numa solução diferente, designadamente a entrada em vigor do ato de direito internacional em causa no momento em que se atinja um determinado número de ratificações. Foi o que aconteceu com o Segundo Protocolo, feito e assinado por todas as partes contratantes do AO e que admitiram a respetiva entrada em vigor logo que três delas ratificassem. O objeto dos dois atos, o AO e o Segundo Protocolo, é o mesmo, os signatários os mesmo, a ratificação ficou aberta a todos. O princípio da boa-fé que rege as relações internacionais foi respeitado. O AO entraria em vigor logo que três Estados ratificassem, e entraria em vigor apenas nesses três Estados. A ratificação ficaria aberta a todos: e três outros já ratificaram.
O AO está em vigor na ordem jurídica portuguesa. Assinale-se que, na nossa ordem jurídica, ocorreu recentemente a ratificação e entrada em vigor de um tratado idêntico: o Tratado Orçamental europeu, assinado por 25 Estados membros da União Europeia, que completa os tratados da União, aberto à adesão e ratificação de todos, e que entrou em vigor em 1 de janeiro último, depois de ratificado, como prevê o respetivo articulado, apenas por 12 dos signatários.
2.    O Vocabulário Ortográfico Comum (VOC) seria “condição essencial” para a entrada em vigor do AO e/ou para a sua aplicação. Na medida em que o VOC não existe, o AO não estaria em vigorou, ou, pelo menos, não seria aplicável. Nada na formulação do artigo 2.° do AO, na sua versão inicial, ou, sobretudo, na redação que lhe foi dada pelo Primeiro Protocolo Modificativo, de 17 de julho de 1998, permite concluir nesse sentido: «Artigo 2.º Os Estados signatários tomarão, através das instituições e órgãos competentes, as providências necessárias com vista à elaboração de um vocabulário ortográfico comum da língua portuguesa, tão completo quanto desejável e tão normalizador quanto possível, no que se refere às terminologias científicas e técnicas.”
O VOC é “desejável” e, por isso, as autoridades dos países membros da Comunidade de Países de Língua Portuguesa fazem o necessário para que o VOC esteja disponível antes do termo dos períodos de transição previstos em cada Estado. Porém, se se entende por “condição essencial” uma condição prévia da existência do VOC à entrada em vigor ou à aplicação do AO, essa condição pura e simplesmente não existe, nem no Acordo nem nos Protocolos modificativos.
3.    «O Acordo Ortográfico é tão mal feito que nem o Brasil o aceita...» Em março de 2008, o Acordo Ortográfico foi aprovado pelo Governo português e ratificado pelo Presidente da República, sendo estipulada uma moratória de seis anos para a sua integral aplicação. Este período de transição termina em 13 de maio de 2015, passando então o Acordo Ortográfico a vigorar em Portugal na sua plenitude. Até lá, coexistem as duas ortografias, a antiga e a nova. No Brasil, esse período de transição, que diz respeito à aplicação e não à vigência, foi recentemente prorrogado para terminar a 31 de dezembro de 2015, de modo a que, nos dois Estados, o termo dos respetivos períodos de transição sejam próximos. «A  iniciativa  servirá  para  harmonizar  o  processo  da  reforma  com  Portugal, que  escolheu  2015  para  finalização  da  entrada  em  vigor»,  afirmou  a  senadora  Ana  Amélia  Lemos,  que  propôs  o  projeto  de  prorrogação  da  data-limite de transição. Foi isso e só isso que aconteceu no Brasil.
Tal facto em nada afeta a vigência do AO no Brasil. Jornais, editoras e até serviços públicos do Brasil aplicam já plenamente a nova ortografia. Mais, bem mais, do que em Portugal. Uma “revolta” contra o AO de um serviço ou fundação pública é impensável no Brasil (ao contrário do que se passa impunemente entre nós). A substituição dos manuais escolares brasileiros encontra-se completa. Autores, jornalistas e editores aplicam sem dramas a nova ortografia. Haverá adversários, mas não se passa o que dizem os nossos profetas: “O Acordo Ortográfico é tão mal feito que nem o Brasil o aceita...” Pasme-se! Ainda que isso incomode os adversários portugueses do AO, que tomam os desejos por realidade, alterando e deturpando factos, o tempo não corre, no Brasil, a favor da denúncia, mas sim da plena aplicação do AO. Tal como em Portugal, apesar da cruzada descabelada dos adversários do AO, para quem a língua se resume à convenção ortográfica, e a questão portuguesa se resume às suas alucinações. Aguardemos que, fazendo vénia à identidade nacional, os cruzados lusos passem a usar a ortografia afonsina. O país ficará assim plenamente soberano e resgatado de todos os males.
Lisboa, 4 de abril de 2013
 
 
Fonte: http://www.ciberduvidas.com/articles.php?rid=2664 (acedido em 22/10/2013)


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